A diversidade (ou não) nos audiobooks

Por Mariana Rolier

Nada é mais satisfatório na carreira de um editor do que ver as histórias dos autores espalhadas para a maior quantidade de leitores/ouvintes possível.

Quando o áudio pode ser um instrumento de inclusão

Trabalho há mais de vinte anos no mercado editorial, acho que bem mais. Quando bateu vinte anos, na verdade, parei de contar. Trabalhei em oito editoras na criação e expansão de selos e estratégia de catálogo, adquirindo novos autores e trabalhando na manutenção e cuidado com os autores de cada casa e nesse tempo pude testemunhar uma abertura motivada principalmente pelos próprios leitores para novas vozes, diferentes culturas e experiências. Vi o crescimento dos livros juvenis quando se diziam que jovens não liam; vi a fantasia se tornar mainstream e depois se transformar em cenário para aventuras femininas. Vi interesse e publicações de autores negros, nordestinos, de outros países fora do eixo EUA-Europa. Há vinte anos atrás o trabalho era praticamente correr atrás do autor de classe média brasileiro e do autor americano. É maravilhoso ser testemunha do tempo quando podemos acompanhar uma evolução tão significativa.

Estou também inserida no mercado de audiobooks há pelo menos cinco anos, como parte de um dos primeiros gigantes de streaming de audiobooks a entrar no Brasil. Até então, já tínhamos uma ou duas empresas nacionais focadas no que se considerava uma verdade nos bastidores do mercado editorial: “só livros de negócios fazem sucesso em áudio”. Quando buscava saber mais, as respostas se concentravam em variações de “É o hábito do homem de negócios: o executivo que consome informação em seu carro indo para o trabalho”. Homem. Trabalho. Executivo. Carro. Elementos que demonstram na construção da frase tantos preconceitos que parecia que só quem tinha ouvido era o homem de classe média/alta, ocupante de um cargo  executivo e com poder aquisitivo para ter um bem. Há cinco anos atrás.

Sempre é possível trabalhar este tipo de “praxe do mercado” (aka preconceito). Basta alguém ter coragem de furar a bolha primeiro. E na época éramos um time de pessoas que acreditava e investia no novo. Começamos a produzir para crianças, adolescentes, mulheres, o público LGBTQIAPN+, afrodescendentes, buscando obras escritas por esta fatia da população e vendo a audiência crescer e se envolver com os conteúdos que publicamos. Mas poderíamos trabalhar o áudio para abraçar e normalizar as diferenças?

Os audiobooks já vinham com uma certa receita de voz masculina (mais grave, quase paternal) e feminina (mais delicada). Se o livro se identificava mais com o gênero masculino era um narrador masculino e vice-versa. Parecia óbvio. Obviamente limitado. Óbvio que precisávamos que a voz identificasse o conteúdo, mas logo vimos que o que se considerava identificação muitas vezes era só padronização.

Também havia outra questão que logo se tornou um desafio: sotaque. Nos alertaram que os audiobooks deveriam ser gravados por paulistanos, por terem um sotaque mais “neutro”. Por algumas vezes recebemos críticas do público que reclamava de um narrador carioca e quando o narrador era de outros estados então era certo receber críticas. Mas desde quando um sotaque é errado? E como esta padronização pode ser benéfica? O brasileiro não pode ser mais plural, mas a dicotomia está presente todos os dias, basta ligar a televisão e assistir e ouvir pessoas e narrações de histórias tão padronizadas que é óbvio que inicialmente a audiência fica incomodada quando algo não é da forma que ela espera. Mas não podemos esquecer, mesmo em áudio, estamos falando de livros. E nosso compromisso com a cultura não pode ser padronizada. Não como há vinte anos atrás. E o áudio é uma ferramenta difusora muito eficaz.

Há muito ainda para trabalhar para abrir novas portas e sustentar a diversidade e inclusão do audiobook no Brasil. Mas também temos aliados. Boa parte do caminho já está em construção pelos podcasters de todo o Brasil que estão normalizando seus sotaques, temas e discussões. Os audiobooks devem normalizar os sotaques, e mais, criar uma ponte amorosa entre o sotaque do outro. Além disso, já é hora de parar de colocar vozes negras apenas para livros de autores/personagens negros. Vozes nordestinas apenas para autores/personagens nordestinos. Vozes LGBTQIAPN+ apenas para narrar histórias de sua própria esfera. Normalizar é abrir a porta para que todas as vozes tenham espaço em diversas histórias.

Com este dever em mente, procuramos a atriz e diretora Renata Carvalho para narrar as obras de George Orwell, totalmente fora de seu ciclo LGBTQIAPN+. Seus dois trabalhos com Orwell renderam audiobooks que estão há mais de um ano na lista de mais ouvidos da plataforma.

Incluir é uma das formas mais eficazes de produzir cultura. Histórias que incluem elenco majoritariamente negro, casais LGBTQIAPN+ que tem histórias de amor e carinho, histórias de mulheres em cargos altos em empresas fazem muito pela sociedade como exemplo e por normalizar vidas. Mas também trazem pluralidade. Afinal, cultura não é apenas falar de um aspecto, mas viver e experimentar outras vidas. Mas se você acha que talvez não “combine”, faça o seguinte exercício comigo: Qual é o seu livro favorito? Se o seu livro favorito fosse narrado por uma voz trans, ou negra, ou por uma mulher, você estranharia? E por que? A resposta incomoda, não?

Se a arte imita a vida, está na hora de lembrar que somos diversos, em um mundo diverso. E que todos nós, editores, queremos alcançar todos. Nada é mais satisfatório na carreira de um editor do que ver as histórias dos autores espalhadas para a maior quantidade de leitores/ouvintes possível. Em vinte e poucos anos de mercado editorial, é um prazer acompanhar o quanto mudamos e o que podemos mudar para contribuir para uma sociedade mais justa, divertida, inteligente e plural.


Mariana Rolier é editora de livros e audiolivros, professora e curadora para o mercado audiovisual no projeto O Gancho Curadoria.

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