Narração de audiolivros por não-narradores: como fazer funcionar?

Por André Calgaro

É final de tarde de uma quinta-feira. Após muitas análises e discussões internas, a equipe de uma editora de livros chega finalmente a um veredito: vamos produzir esse audiolivro! Com o título definido e orçamento aprovado, surge a questão das questões: e quem irá narrar?

Com o crescimento do mercado de audiolivros, essa situação fictícia tem sido cada vez mais frequente em editoras Brasil afora. E embora na maioria das vezes o indicado seja um narrador profissional, há situações em que pode haver um cenário diferente.

E quando um… não-narrador narra um audiolivro – catástrofe à vista ou sucesso inevitável?

Pode ser tudo isso e também um caminho do meio. Neste texto, vou explicar quando isso ocorre, as razões, os cuidados a se tomar para que a produção tenha êxito, e contar alguns bons cases, ou melhor dizendo, causos, que eu e minha equipe da Narratix já vivemos, em mais de 1.500 produções entregues nos últimos anos para vários clientes ao redor do mundo.

Narrar ou não narrar, eis a questão

Um dos fatores de sucesso para um audiolivro, não é segredo, é a escolha do narrador. Quem dará voz à obra e será sua vitrine? A quem caberá a epopeia de contar a história?

O caminho mais comum é selecionar um narrador profissional, por meio de um casting (processo de seleção de vozes). Ou seja, um artista de voz, alguém habituado não somente ao ofício, à arte de interpretar (em toda sua enorme complexidade) um texto, mas também à exigência física e mental de se encavernar por horas – e dependendo da duração, por inúmeros dias – no ambiente de estúdio, e também habituado à grande disciplina requerida em uma produção de audiolivro.

Então, não basta só saber contar a história com brilhantismo, o que por si só envolve técnica, estudo, experiência e talento, mas também: errar pouco durante a leitura (tem algo pior do que chegar ao final de uma produção e tombar amedrontado ao se deparar com um relatório de revisão em que pululam centenas de erros?); saber lidar com os rigores do ambiente de um estúdio por horas a fio (por mais agradável que o estúdio seja); saber ser dirigido, quando necessário; e mais outros vários predicados não tão fáceis de se encontrar juntos.

Porém, nem sempre a escolha é feita por um narrador profissional. E quando isso ocorre? Nas situações em que o “dono” da obra, o detentor de seus direitos, seja ele uma editora, uma plataforma, um autor, etc., pode preferir selecionar alguém que, mesmo não sendo um profissional da voz, irá somar outras camadas de dividendos contextuais à produção.

Eis as principais escolhas:

O próprio autor narrando a obra

Parece uma escolha até natural, para muitos. O autor é vivo, o audiolivro não é decorrente de uma versão traduzida e o próprio escritor, o artífice que concebeu durante meses, anos ou décadas aquele livro e que o conhece mais do que ninguém pode narrar. Que tal já começar o livro sabendo que aquela personagem que aparece na página 8, que aparentemente é uma velhinha, na realidade se revelará 100 páginas à frente como o assassino, e assim a interpretação pode ser feita na medida?

Então, não tem como dar errado, certo? Errado.

Conhecer a história é fundamental, mas saber contá-la são de fato outros quinhentos. E não estamos falando aqui subjetivamente de uma voz “bonita”. Até porque estão cada vez mais em voga timbres e narrações considerados naturais. A hegemonização da dita “voz de locutor”, aquela grave e poderosa, no caso de homens, ou profunda e aveludada, no caso das mulheres, já deixou de ser a preferida há tempos. Estamos aqui falando de como contar uma história de forma agradável, empolgante, instigante. Alguns autores podem já ter habilidade com uso da voz profissionalmente, como jornalistas, apresentadores e palestrantes, levando alguma vantagem aqui. Contudo, isso também pode trazer junto uma série de vícios de narração, como uso de uma musicalidade repetitiva ao entoar as frases, que, num audiolivro com duração de horas, pode gerar uma sensação ruim no ouvinte.

Quando pode ser bom:
Quando o autor possui disponibilidade de tempo (lembra do citado acima sobre ficar horas, dias num estúdio?), e alguma facilidade ou habilidade para contar histórias. Não estamos falando de habilidade de fazer vozes diferentes (no caso de ficção), mas de manter uma história atrativa e conseguir dar coloridos de forma natural, de modo a não deixar a narração monótona e cansativa. Em certos títulos, o autor narrar traz uma experiência bem interessante, por exemplo, em obras biográficas ou de não-ficção. A própria pessoa relatando ao ouvinte a sua história realmente traz uma autenticidade diferenciada e que pode gerar inclusive boas oportunidades de marketing.

Como evitar problemas:
Antes de tudo, grave um teste. Peça ao autor para ler 2 ou 3 minutos do texto. Ficou bom? Errou muito? Dá para ser lapidado?

O autor e a editora precisam saber que gravar um audiolivro demanda tempo. Para cada uma hora líquida de áudio, quem irá narrar precisará ficar, em média, 3 horas em estúdio – isso considerando que haja aquela facilidade natural, do contrário esse tempo pode aumentar bastante, e uma baixa produtividade pode gerar prejuízos financeiros e no cronograma de produção.

Além do tempo em estúdio por sessão de gravação, é preciso que o autor possa se deslocar ao estúdio com alguma frequência. Se é um título extenso, o ideal seriam gravações diárias, do contrário, gera-se um abacaxi perdurando por meses a fio.

Além disso, é preciso balizar as expectativas quanto à narração do autor. Mesmo com direção artística, não dá para transformar um iniciante em um narrador espetacular. A ideia não pode ser essa, e sim contar a história à maneira dele, e nisso a direção pode representar um papel fundamental ao guiar o autor, municiando-o com recursos e técnicas de narração. Em alguns casos, contudo, os autores não gostam de ser dirigidos. E o que a editora espera em relação aos erros? Trocar “pra” ou “para” é aceitável? Qual o grau de exigência?

Por fim, é importante dosar o ímpeto do autor de querer mudar o texto na hora da gravação, do contrário, para muitos, pode virar uma revisão em tempo real e excruciante. Já tivemos casos de autores que resolveram reescrever parágrafos inteiros em estúdio.

Uma personalidade conectada ou não à obra narrando

Aqui podemos incluir desde celebridades (de vários quilates) até personalidades ou figuras conhecidas em certos nichos vinculados à obra.

No caso das celebridades, vem um ganho imediato no quesito de marketing, de divulgação midiática. Então, não é só um audiolivro lançado, mas um audiolivro narrado por uma atriz de sucesso ou por um jornalista conhecido.

Em relação às personalidades ou figuras de nicho, tem-se o mesmo efeito de publicidade, que pode ser em menor escala, mas que, sendo de nicho, o tiro é mais certeiro ao atingir um segmento. Que tal um livro sobre marketing pessoal narrado por um influencer notável ou uma obra de culinária narrada por um chef de relevo?

Quando pode ser bom:
Primeiramente, quando há facilidade de acesso à pessoa e quando há verba disponível para bancá-la. Uma celebridade usualmente pedirá um valor de cachê maior, e uma personalidade de nicho, dependendo, também. Existe esse valor disponível? Então, de fato, isso pode trazer ganhos de divulgação.

A personalidade tem alguma relação com a obra ou com o autor? Seja no que tange à esfera de atuação profissional, origem, ou mesmo a um acontecimento pessoal? Uma conexão assim é interessante de ser explorada.

Como evitar problemas:
Assim como com autores, deve-se analisar previamente os aspectos de habilidade para narrar e agenda para frequentar o estúdio. No quesito facilidade de narração, logicamente atores e atrizes levam vantagem aqui, por já trabalharem com interpretação. Claro que a narração é uma forma de arte distinta da atuação em cinema ou teatro, por exemplo, já que não se tem o recurso visual, corporal. Mas, usualmente, pessoas das artes cênicas têm facilidade para se adaptar à narração.

O segundo ponto, da disponibilidade, dependendo, pode ser um fator complicador ainda maior, e como a comunicação em alguns casos é feita via assessor e não diretamente, marcar sessões pode ser algo mais penoso. Logo, o narrador designado deve ter plena ciência da quantidade média de sessões de gravação em que precisará comparecer.

No caso de personalidades que não sejam atores, atrizes ou jornalistas, apresentadores, etc., deve-se igualmente alinhar as expectativas quanto ao que esperar e o que exigir da narração.

Cases

“Sem Data Venia”, escrito e narrado por Luís Roberto Barroso.

Produzimos esse título para a editora Intrínseca, e gravar um ministro do Supremo Tribunal Federal foi uma experiência interessante e diferente. A começar pelo aparato de segurança. Gravamos esse título em Brasília, e dias antes do início da gravação recebemos visita de assessores e chefes de segurança para análise do perímetro. No dia das gravações, além de uma assessora, havia todo um aparato envolvendo vários seguranças, o que gerou curiosidade na vizinhança.

Em relação à gravação propriamente dita, o ministro se enquadrou naqueles casos em que já há uma experiência grande com o uso da voz, demandando uma direção mais pontual, uma vez que ele errava pouco e inclusive disse ter adorado a experiência.

“Imponente”, escrito por Celso de Campos Jr.Cesar Greco, e narrado por Silvia Grecco.

Esse é um título da Garoa Livros, que produzimos à época para a sueca WAPI (hoje o título é da Popstories) e foi uma produção bem diferente! No meio da pandemia, surgiu a oportunidade de gravar esse título com Silvia Grecco, que havia recebido o Fifa Fan Award, por conta de sua história de narração de jogos do Palmeiras ao seu filho Nickollas nos estádios. Então, neste audiolivro entramos naquele diferencial de personalidade de nicho.

E quais foram os desafios aqui? Devido às restrições da pandemia, tivemos que montar uma estrutura de gravação na própria casa de Silvia, na região do ABC em São Paulo, mais especificamente no quarto do filho dela, mantendo todos os protocolos de saúde. Além disso, a experiência com narração era algo íntimo, ligado ao filho dela, e não uma experiência formal com uso da voz, o que demandou um trabalho de direção diferente para o projeto.

“Salvar o Fogo”, escrito e narrado por Itamar Vieira Junior.

Produzimos essa importante obra da Todavia em parceira com a Bookwire Brasil. A gravação foi toda feita em Salvador, e a atuação do Itamar nos surpreendeu, pois além de ter recebido muito bem as orientações de direção, ele já possuía uma facilidade para contar histórias. Isso resultou em um audiolivro muito bonito, tendo inclusive recebido muitos elogios relacionados à própria narração, como este, escrito por um ouvinte no site da Audible: “A história é muito envolvente. Não dá pra parar de ouvir. E o áudio é muito bom, afinal, o próprio Itamar narrou, né?!”.

“Longe do Ninho”, escrito por Daniela Arbex e narrado por Tino Marcos e pela autora

Outra produção para a editora Intrínseca, essa gravada no Rio de Janeiro e em Juiz de Fora. O narrador principal foi o Tino Marcos, jornalista muito conhecido, e que, devido à larga experiência com uso da voz, conseguiu entregar uma narração excelente. O mais interessante é como a narração dele casou com a obra, com o tipo de texto da autora, ocasionando uma sincronia artística. Aliás, falando da Daniela Arbex, ela também gravou uma seção do livro e trouxe uma carga pessoal que fez a diferença na experiência auditiva.

André Calgaro, contador de histórias em áudio, empreendedor e pesquisador do universo do áudio digital, é fundador da Narratix (www.narratix.com.br), uma empresa especializada em áudio storytelling em vários idiomas, incluindo a produção de audiolivros, podcasts e outros conteúdos falados, e que colabora com as mais importantes companhias nacionais e estrangeiras, entre plataformas, grupos editoriais e instituições privadas. É também fundador da NarraKids (www.narrakids.com), selo editorial voltado a crianças e famílias. Seu contato é andre.calgaro@narratix.com.br.

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