Há algo de ancestral no ato de ouvir histórias. Muito antes de Gutenberg e da difusão dos livros de papel, quando o mundo ainda cabia ao redor de uma fogueira, era a voz quem guardava a memória. Ela ensinava, encantava, transmitia e perpetuava.
Milênios depois, entre buzinas, fones de ouvido e notificações incessantes, o ser humano faz renascer esse poder. O livro, agora, fala. E o Brasil – país de grandes distâncias, de horas gastas no trânsito, de vozes plurais e ritmos múltiplos – mostra-se terreno fértil para esse redescobrimento da escuta literária.
Um país propício à escuta
As condições geográficas e sociais brasileiras formam um cenário particularmente favorável ao crescimento do formato. A rotina das metrópoles, o transporte público lotado, as longas viagens de carro, as caminhadas e os treinos diários – tudo isso compõe uma coreografia de movimento contínuo, em que o olhar raramente descansa, mas o ouvido permanece disponível. O audiolivro se encaixa nessa brecha da atenção: ele não compete com o tempo, ele o acompanha. Permite “ler” enquanto se dirige, cozinha, corre ou espera. É o primeiro formato que transforma a leitura em gesto simultâneo – não mais um ato solitário e imóvel, mas um companheiro portátil da vida cotidiana.
Mais ainda, esse caráter híbrido entre literatura e rotina tem outra virtude – o de abrir as portas do mundo dos livros para quem antes permanecia do lado de fora. O ouvinte, muitas vezes não-leitor habitual (inclua-se aqui os que não lêem, mas também os que não podem ler – analfabetos – e os que tem dificuldade para ler – deficientes visuais de em diversos graus), encontra no áudio uma forma de iniciação, um convite menos intimidante e mais acessível à imaginação. O audiolivro democratiza o livro sem empobrecê-lo.
Mas há ainda outro elemento que reforça o terreno fértil brasileiro: o hábito já consolidado de escuta de conteúdos em áudio – em particular os podcasts. Esse ambiente auditivo previamente cultivado prepara o público para a transição — não de “ler com os olhos”, mas de “ler com os ouvidos”.
O hábito de ouvir: podcasts e prontidão para o livro falado
Ao observamos o ecossistema de áudio no Brasil, encontramos sinais claros de que o país está adiantado nessa curva de escuta. Estudos sobre o consumo de podcasts apontam que, em 2023, a América Latina já contava com cerca de 135,2 milhões de ouvintes de podcasts, dos quais o Brasil liderava com 51,8 milhões de ouvintes. (Podnews – “The State of Podcasting in Latin America” – fev/2024)
Outra métrica relevante, segundo dados de 2025, 44% dos brasileiros declaram ouvir podcasts de forma regular (Castnews).
Esses números atestam que o brasileiro já está habituado a “dar ouvido”, a inserir o áudio em suas atividades diárias – o que torna o salto para o audiolivro muito menos disruptivo.
Em outras palavras, a cultura da escuta já está em curso – os fones no ônibus, o streaming no carro, a palestra no treino – e o audiolivro encontra esse “estado de prontidão”. Para as editoras, isso significa que não se está apenas lançando um novo formato – está se aproveitando uma predisposição cultural vigente.
E o mercado ainda se aproveita também de uma rede de distribuição singular presente em nossos bolsos. A aquisição e consumo dos audiolivros acontece no aparelho que hoje é extensão da gente, nunca houve uma rede de distribuição quase que automática, onipresente, inserida no mesmo “device” que permite o consumo do próprio conteúdo.
Crescimento em ritmo acelerado
Os dados confirmam essa intuição da cultura de escuta. O mercado de audiolivros no Brasil segue em plena expansão. Baseado no que enxergamos aqui na Bookwire Brasil, no segundo trimestre de 2025 a receita atrelada ao consumo cresceu 138% em relação ao mesmo período do ano anterior, enquanto o aumento no tamanho do catálogo foi de apenas 37%. Comparado ao trimestre anterior, o salto da receita foi de 22%, frente a um crescimento de 8% do catálogo.
Mais relevante ainda é a participação do áudio na receita digital total — entre obras disponíveis tanto em áudio como em ebook – que atingiu 11% de janeiro à setembro de 2025 (recorde histórico na fatia de mercado que a Bookwire alçanca no Brasil). Essa expansão deu-se sem sinais de canibalização do ebook.
Esses indicadores revelam algo importante: o audiolivro não substitui o ebook nem o livro impresso – ele amplia o território da leitura, alcançando novos públicos e reanimando catálogos e renovando o ciclo de vida dos títulos. Cada título narrado ganha uma segunda vida; cada voz, uma nova porta de entrada para o mesmo texto.
Um fenômeno global em expansão
A tendência não é isolada. O mercado global de audiolivros atingiu US$ 8,7 bilhões em 2024 e projeta-se que chegue a US$ 35,47 bilhões até 2030, com um crescimento anual médio de cerca de 26,2% entre 2025 e 2030, segundo o relatório Audiobooks Market Size, Share & Trends Analysis Report (Research and Markets).
Os vetores desse crescimento são múltiplos – expansão do streaming de áudio, aumento do modelo de assinatura digital, maior mobilidade do usuário, e – de modo cada vez mais relevante – o uso da Inteligência Artificial (IA) e do Processamento de Linguagem Natural (NLP) para personalização de consumo.
Plataformas como Spotify ampliaram sua presença no segmento de audiolivros e podcasts. Por exemplo, ao disponibilizar horas de audiolivro para assinantes Premium, o Spotify quase triplicou seu catálogo em inglês (agora mais de 400 mil títulos) e reportou crescimento de mais de 30% no número de ouvintes e 35% em horas escutadas em mercados como EUA, Reino Unido e Austrália.
Já a Audible anunciou em 2025 planos de mais de 100 vozes geradas por IA em inglês, espanhol, francês e italiano, além de traduções via IA – e lançou modelos self-service para editoras que desejarem fazer uma autogestão de sua produção.
E, por aqui, em nosso quintal, comprova-se a incrível criatividade brasileira na criação de modelos disruptivos que tem sido um dos pilares de maior penetração do formato, modelos como o oferecido pela plataforma Skeelo que vem facilitando o acesso e democratizando a escuta.
Os desafios da produção nacional
Apesar do avanço, a base de títulos disponíveis em português ainda é modesta. Produzir um audiolivro de qualidade envolve estúdio, direção, edição, mixagem e revisão, o que encarece o custo por título. Isso torna a formação de catálogo um dos gargalos mais relevantes no Brasil. Em muitos casos, editoras hesitam em investir antes de ter segurança de retorno.
O custo – e o risco – fazem com que o ritmo de crescimento do catálogo brasileiro ainda seja “tímido”, comparado aos mercados anglo-saxônicos. Assim, mesmo com demanda em aceleração, há títulos com forte potencial que não têm ainda versão em áudio.
A estratégia, portanto, requer curadoria disciplinada. Editoras precisam priorizar os títulos certos – aqueles com maior probabilidade de engajamento e consequente retorno em áudio: gêneros como desenvolvimento pessoal, negócios, ficção, autoajuda ou religião são atualmente os mais rentáveis no formato. Uma boa prática é lançar simultaneamente em impresso, ebook e áudio, maximizando a penetração.
Há ainda outra resistência cultural – muitos editores, autores e agentes literários veem com cautela o uso de vozes sintéticas ou emuladas – sobretudo em ficção, em que a interpretação humana, com suas pausas e inflexões, faz parte da experiência. A transição da “voz humana” para a “voz IA” no livro falado ainda enfrenta objeções em termos de nuance, emoção e “presença” narrativa.
De um ângulo mais otimista, importante enfatizar que esses desafios não precisam ser enfrentados de forma solitária pelas editoras. Existem iniciativas e empresas que auxiliam na formação de catálogo, mitigando as barreiras de entrada. Para além dos eventuais ganhos potenciais, há um esforço coletivo na construção de uma oferta de catálogo que o mercado anseia.
A Inteligência Artificial e o ganho de escala
Mas ignorar o potencial da IA seria desperdiçar uma oportunidade histórica. As vozes emuladas não precisam substituir o narrador humano – podem complementá-lo ou serem utilizadas em títulos menos dependentes de performance emocional. Em gêneros como técnicos, educativos ou informativos, elas já demonstram excelente custo/benefício, com valores de produção até dez vezes menores do que narradores humanos.
Além disso, a IA permite a democratização da produção: editoras menores, selos regionais ou autores independentes podem lançar versões em áudio de seus títulos com investimento reduzido – o que amplia não só o catálogo, mas também a diversidade de vozes, sotaques e narrativas regionais.
O desafio está em equilibrar tecnologia e sensibilidade – fazer da IA uma aliada, não uma substituta. Assim como o compositor que usa sintetizadores sem renunciar ao violino, o editor do futuro usará vozes artificiais sem perder de vista a humanidade da história contada.
Potencial brasileiro e recomendações estratégicas
Diante desse panorama, como as editoras brasileiras – e os profissionais do mercado editorial – podem agir para aproveitar essa janela de oportunidade?
- Mapear o catálogo “sem áudio” com prioridade – identificar os títulos que já têm público estabelecido, boa venda em impresso ou ebook, e potencial de performance em áudio. A lista de obras Curva A da Bookwire indica que títulos já consagrados podem render mais no áudio do que no ebook em algumas situações.
- Alinhar lançamento simultâneo multiformato: publicar impresso, ebook e audiolivro ao mesmo tempo reduz o efeito “retardo” e permite capturar o público de áudio desde o primeiro momento.
- Investir em narradores locais e vozes regionais: o Brasil tem uma riqueza de sotaques, cadências e ritmos de fala que podem enriquecer a narração e aproximar o conteúdo do ouvinte. Isso gera identidade e diferenciação.
- Avaliar usos da IA com equilíbrio: para títulos de nicho ou de backlist, a voz sintética pode viabilizar produção rápida e econômica; para ficção de peso ou design narrativo complexo, manter o narrador humano pode ser diferencial de qualidade.
- Aproveitar o hábito de escuta de podcasts: aproveitar que o público brasileiro já está acostumado à escuta em movimento – ônibus, metrô, academia, supermercado — para promover os audiolivros como extensão natural desse hábito. A comunicação pode posicionar o audiolivro não como “ler diferente”, mas como “ouvir enquanto se vive”.
- Modelos de assinatura e “bundling”, dado que o crescimento de receita em áudio tem sido mais forte em modelos de assinatura (no digital) do que o crescimento de títulos, explorar alianças com plataformas de streaming, bundles inter-formato ou parcerias para expandir o alcance.
- Monitorar métricas de consumo e obter feedback: usar dados demográficos das plataformas de distribuição – início de escuta, porcentagem de conclusão, retenção – para ajustar narradores, ritmo, duração média, marketing e políticas de preço.
O Brasil parece pronto para ouvir.
Nossos sotaques, nossa oralidade exuberante e nossa relação natural com a música e a fala criam um terreno fértil para uma nova forma de “ler”- a escuta literária. A convergência entre mobilidade, hábito de áudio (via podcasts) e inovação editorial oferece ao setor editorial brasileira uma janela rara – não apenas para adotar um formato emergente, mas para liderar sua adequação ao nosso contexto sociocultural.
À medida que o catálogo se amplia, os custos recuam, os ouvintes se familiarizam e as vozes (humanas ou híbridas) se tornam referência, o audiolivro deixa de ser uma curiosidade e se torna permanência. Em poucos anos, talvez não falemos mais em “ler um livro” ou “ouvir um livro”, mas simplesmente em “viver uma história”. O texto deixa de ser página e passa a ser presença. A palavra escrita se faz som, e o som devolve à literatura o que ela sempre teve de mais essencial: a voz humana.
O futuro da leitura também é auditivo – e o Brasil está bem posicionado para protagonizá-lo.
Esse artigo foi originalmente publicado no Panorama Editorial Especial Associados da CBL (Câmara Brasileira do Livro)
Marcelo Gioia é profissional de marketing e publisher. Iniciou sua carreira profissional no setor de Telecom envolvido em redes e produtos satelitais. Passou por algumas editoras brasileiras e internacionais. Desde 2009 tornou-se um entusiasta dos e-books e da revolução digital e como CEO do Copia Brasil lançou a primeira plataforma de leitura social na América Latina. Atualmente trabalha na equipe da Bookwire como Managing Director no Brasil.