Por Gustavo Faraon
Lembram quando o E-book vinha chegando por aqui? Tudo era dúvida. Ele trazia consigo um certo temor de transformação, que para alguns também era uma esperança de refundação completa de tudo. E lembram das narrativas criadas, dos prognósticos, das razões pelas quais se deveria apostar nele?
Primeiro, era o apocalipse tecnológico: os livros digitais iriam obliterar os físicos em pouco tempo.
Depois, embora não tenha ocorrido uma aniquilação total, as apostas davam conta de que rápida e inevitavelmente ambos se equiparariam em termos de vendas, e não estar ligado no digital era abrir mão de metade de tudo.
Quando se percebeu que não era bem assim, viu-se nos índices do mercado norte-americano uma perspectiva sedutora: mesmo que digital e físico não tivessem uma representatividade equiparada, era certo ao menos que uma fatia muito substancial do faturamento seria oriunda do E-book.
Por fim, quando ficou evidente que os índices daqui dificilmente chegariam nesse patamar (e ainda estamos longe dele), um ar de aceitação resignada sobreveio.
Enfim, o futurismo é mesmo um lance complicado.
Em se tratando de E-book, fui desde sempre um entusiasta de primeira hora, a encarar o livro digital como opção maravilhosa: mais barato, mais prático, potencialmente onipresente, sem estoque nem frete.
Mas à medida que a coisa não avançava conforme o esperado, ou conforme o desejado, nunca faltaram a todos nós teorias e hipóteses para explicar essa demora. Mercadológicas. Estratégicas. Tecnológicas. Eu, como todo mundo, sempre tive minha teoria de estimação. A diferença é que ela era uma teoria nem tanto a sério, era muito mais uma provocação que eu desejava ver desfeita o quanto antes. Hoje, olhando em volta, ela segue válida. O Brasil já tem mais smartphones ativos do que habitantes. Um sistema de distribuição de E-book que funciona muito bem. E então, o que pode estar faltando para o E-book cumprir por aqui o seu gigantesco potencial?
Minha teoria – pessimista e um tanto cínica, eu confesso – sempre foi calcada na mais cretina obviedade:
Um E-book não serve para presente, não pode ser embrulhado em papel colorido e fita brilhante, não pode ser carregado a tiracolo a um aniversário ou ao amigo secreto da firma. Um E-book não serve para encher estante, para deixar um ambiente mais aconchegante, mais descolado ou com ar cult. Um E-book não serve como peça decorativa de mesa de centro. Ele não serve para impressionar. Um E-book não serve para apoio, para peso e nem sequer para esconder um bilhete, dinheiro ou um segredo, como nos filmes de espionagem. Um E-book tampouco é fotogênico. Pior, um E-book é tão discreto que nem sequer é capaz de identificar publicamente o leitor como um leitor.
Um E-book, sempre pensei, “só serve” para ler.
Tem. Que. Ler.
E isso, mesmo a mais avançada tecnologia que tanto enriqueceu o E-book de possibilidades, ainda não se viu capaz de contornar.
E aí que está:
De acordo com dados de 2016, apenas 8% dos brasileiros são considerados alfabetizados proficientes, o nível mais avançado de alfabetismo em um índice chamado Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional): isto é, conseguem ler e compreender informações mais complexas, entre outras habilidades. Outros 23% estão posicionados dentro do grupo de alfabetismo intermediário. Isso significa que quase sete em cada dez brasileiros, caso tentassem aprender a usar instrumentos de corte utilizando apenas instruções escritas em bom português, provavelmente acabariam gravemente feridos.
Gracejos hiperbólicos à parte, o cenário é triste.
Temos na nossa mão um não-objeto maravilhoso, produto cultural e tecnológico que conseguiu incrementar o nosso querido livro em preço (menor), disponibilidade (maior), acessibilidade (muito maior) e tantos outros fatores. Mas não conseguimos ensinar as pessoas a ler.
Para mim, depois de vencidas tantas barreiras complexas no caminho do livro digital, resta cristalizado, bem na nossa cara, quase como um deboche, o mais básico desafio, o mais importante e urgente.
Acho de verdade que o trabalho que se faz com o E-book no Brasil é bom, é mesmo muito bom. A questão é que ele enquanto produto requer, para ser consumido e desfrutado, uma habilidade que a nossa população, em sua maioria, não domina.
E não dá para ficar esperando que a tecnologia, sozinha, resolva o nosso problema, transformando o livro digital em uma outra coisa que prescinda de qualquer letramento. Nesse caso hipotético, pode até ser que juntos vendamos muitos e muitos E-books, mas seria um péssimo final de história em que viveríamos todos felizes e analfabetos para sempre.
Gustavo Faraon é jornalista, mestre em comunicação pela UFRGS. Em 2009 fundou, em Porto Alegre, a Editora Dublinense. Foi um dos vencedores do Prêmio jovens Talentos da Indústria do Livro 2016. Apesar de adorar e colecionar edições bonitas, lê quase sempre através do celular.