As múltiplas dimensões da narrativa

Por Spencer Toth

Tivemos a honra e a sorte de já termos narrado mais de 110 livros para as mais diversas plataformas e dirigido artisticamente diversas obras de bastante importância literária como a recentemente lançada trilogia “O Senhor dos Anéis” da Editora Harper.

Se há algo que podemos afirmar com total segurança é que a narração é um processo comunicativo altamente complexo.

Quando lemos em silêncio um livro, há uma voz dentro de nós que ressoa. Essa voz é quase um murmúrio que ecoa aquilo que estamos absorvendo naquele momento. Normalmente ela é constante e quase uniforme. É a mesma voz quando lemos um texto de jornal, um livro, uma revista em quadrinhos ou uma tese de doutorado. Ela pode ou não ser acompanhada de um som cantado – para dentro ou para fora – denominado “nãnãnã”.

Nós mesmos controlamos a velocidade que lemos, que geralmente é constante seja qual for o teor ou a natureza do texto que estamos consumindo. Aliás, o estímulo da leitura “para si” é tão uniforme e constante, que, se não estamos acordados e atentos, nós mesmos nos “damos sono”.

Todos sabemos que a fotografia – e consequentemente o cinema e a televisão – se iniciou branco e preta. E todos sabemos o quanto revolucionário foi para a sociedade quando tudo passou a ser colorido. Hoje, é difícil ver fotos ou assistir a filmes sem cores. É até um pouco estranho…

Há quem diga que assistir certos filmes em outro formato que não seja o 3D passou a ser entediante.

O ser humano se acostuma com a dinâmica. Você é mais rápido que o seu dispositivo informático, não é mesmo?

Assim, é possível dizer sem medo de errar que as gerações atuais – mais jovens ou menos jovens – gostam de estímulo. Estão acostumadas com o estímulo. E, ainda mais, precisam de estímulo para criar e manter interesse. Há quem diga que os primeiros 5 minutos de um filme e as primeiras 5 páginas de um livro têm o condão de criar atenção ou criar dispersão.

Pois o mesmo se aplica à narração do audiolivro.

No início a narração era branca e preta posto que era feita em um tom flat e sem emoção, interpretação ou variação de voz. Mas com a necessidade de dinamismo existente na sociedade da informação, com a velocidade inerente ao dia a dia trazida pela tecnologia e pela diversidade de produtos disponíveis, quase ninguém mais aceita esse produto sem cor.

Quando ensinamos em nossos workshops de narração e storytelling, costumamos defender a necessidade de dar brilho à leitura uma vez que o novo mercado consumidor precisa de um produto especial para não cair na mesmice enjoativa do passado. O brilho é responsável pela maximização da comunicação.

A complexidade da narração vem do fato de que há uma diferença entre os processos de (i) usar a voz, (ii) usar a voz compreendendo o que se lê, (iii) interpretar usando a voz e (iv) comunicar-se com a voz.

O mero uso da voz é uma atividade mecânica. A voz é uma ferramenta de verbalização de símbolos. Mas somos totalmente capazes de usar nossas vozes para ler palavras que não compreendemos o significado. Isso não gera resultados comunicativos úteis, mas apenas expressões de sinais linguísticos. É um ato automático e sem profundidade intelectual.

O uso da voz compreendendo o que se lê já é bastante diferente. Isso porque para se compreender o que se lê há um processo cognitivo dos sinais que necessariamente antecede a exteriorização da informação através da ferramenta-voz. Assim, ler compreendendo é expor diferentemente, dando ênfases e acentuação corretas às palavras para que aquilo que foi compreendido seja corretamente exteriorizado de modo a fazer sentido. Mas esse processo pode ser enfadonho posto que mesmo se compreendendo a mensagem, tão importante quanto atingir o resultado é a forma como esse resultado é atingido. A mensagem lida e compreendida precisa chegar ao destinatário de modo agradável, adequado e simpático.

Não basta escrever um texto que passa uma ideia, é preciso que esse texto seja funcional para o destinatário no que toca à linguagem utilizada. Não basta ler em voz alta uma história, é preciso cativar a atenção do destinatário da mensagem através de recursos. Aí entra a interpretação.

Cada peça literária pede uma interpretação adequada à mensagem que se quer passar. A escolha e a sensibilidade do narrador é fundamental nesse momento. A má escolha da forma de interpretação pode estragar uma narrativa. Ler um livro de modo exageradamente interpretado (over) – estilo novela mexicana – somente faz sentido em casos muito específicos como livros infantis ou teatro do ridículo. Mas ler um texto de modo subinterpretado (under) também prejudica muito a mensagem transmitida.

Ler um texto jornalístico como se recitasse uma poesia não faz sentido. Ler uma cena de guerra lentamente não faz sentido. Ler alegremente numa cena de suicídio não faz sentido. Ler em voz baixa uma mensagem panfletária não faz sentido. Fazer um discurso de uma senhora de idade soar jovial e rápido não faz sentido. Ler sem energia na voz nunca faz sentido.

É preciso acertar o tom, entendendo-se a natureza da mensagem. O(a) autor(a) de um texto normalmente mostra para o narrador como ele deve ser lido. O(a) autor(a) escolhe as palavras de modo a dar sinais da forma como deve ser lido. Não ficção normalmente pede energia mais sóbria, tom mais ameno, pouca interpretação. Ficção pede energias diferentes para gêneros diferentes. Pede velocidades diferentes, pede texturas de voz diferentes.

Errar o tom da interpretação implica em não atingir o ponto mais complexo e completo da narração: a comunicação eficaz. Não basta interpretar. Tem que interpretar corretamente. Só assim se conseguirá seduzir o ouvinte e o deixar interessado.

É acertando a forma em suas múltiplas dimensões que o narrador consegue fazer a sua audiência se emocionar, rir, chorar, se intrigar, se confundir, gerar cultura e conhecimento.

Assim como no cinema a imersividade depende de uma boa cadeira, um som de muitas camadas, uma imagem fiel, uma dublagem adequada, uma mixagem de diálogos, músicas e efeitos sonoros, uma boa fotografia, uma iluminação correta, trilha sonora, etc, a narração também depende de um correto uso de variáveis.

E quais são as dimensões da comunicação em uma narração de audiolivro?

  • A velocidade de leitura.
  • A variação de tons e desafinos.
  • A textura colocada na voz em diferentes momentos.
  • A colocação de pausas corretas.
  • A valorização adequada das palavras.
  • A construção de formas de falar ou vozes para personagens.
  • A altura da voz em diferentes situações.
  • A simpatia do narrador em trechos específicos.
  • A energia colocada na apresentação.

A velocidade da leitura deve variar conforme o clima de ansiedade que se quer colocar no momento narrado: maior velocidade gera mais senso de urgência e angústia, devendo ser usada em cenas de guerra, ação, perseguição, aventura. Uma menor velocidade deve ser usada para cenas bucólicas, românticas, domésticas e explicativas em que detalhes precisam ser destacados. O uso de diferentes velocidades na leitura é um recurso importante para dar o clima correto ao ouvinte.

A variação de tons é importante para não gerar monotonia no ouvinte. O tom agudo repetitivo irrita. O tom grave repetitivo é enfadonho. É preciso constantemente variar entre tom agudo, tom médio e tom grave para gerar colorido na mensagem. O narrador também não deve se preocupar em empostar a voz em demasia, valorizando mais a ferramenta do que o processo comunicativo. Desafinar a voz, falhar a voz, alternar a voz, tudo isso gera humanização e aproximação com o ouvinte.

A voz admite muitas texturas: aveludada, arranhada, áspera, doce, desafinada, esganiçada, grave, forçada, jornalística, caricata. Todas as texturas podem e devem ser misturadas para fins de embelezar o discurso comunicativo.

Assim como a música é feita de barulhos e silêncios, a narração também o é. Dar pausas corretas e fazer silêncios cheios de significado podem dar o drama ou o suspense corretos para o clima a ser desenhado. Silêncios antes de palavras que merecem destaque também são fundamentais para dar a importância necessária ao significado a ser transmitido.

Adjetivos, advérbios e palavras destacadas pelo(a) autor(a) na forma de grifo, negrito ou aspas devem ser devidamente evidenciados. O respeito àquilo que o(a) autor(a) decidiu destacar é dever do narrador para com a mensagem. Não é escolha do narrador destacar o que o criador da mensagem, mas sim dever.

Há quem ache que o narrador (de ficção especialmente) deve ser um profissional capaz de fazer vozes, mimetizando estilos. O narrador não é um imitador e o uso de vozes exageradas ou caricatas geram uma impressão de mensagem não séria. Apenas estilos literários específicos admitem exageros. Narrador homem não faz voz de mulher. Narrador jovem não faz voz de pessoa mais idosa. Narrador de mais idade não faz voz de criança. Pode ficar artificial e estragar a experiência. Assim, o narrador deve criar características de tom, velocidade e textura para personagens diferentes evitando vozinhas. O ouvinte sabe que a voz é sempre de uma mesma pessoa. Tentar forjar uma voz que não é sua, mais prejudica do que auxilia na interpretação. Uma voz de pessoa de idade pode ser simplesmente tremida, ou mais lenta, ou fazer pausas especiais. Uma voz de um jovem pode ser mais alegre, mais rápida e mais pululante. Mas basta.

A altura da voz também importa. Ainda que o microfone diante do narrador capte tudo, é importante a variação da altura da voz em situações específicas – especialmente quando a história declara abertamente. Não faz sentido o narrador manter o mesmo tom de voz se a história diz que o personagem está sussurando. Idem se o personagem está gritando para alguém do outro lado da sala. O narrador tem o dever de narrar falas de acordo com o bom senso e o que pede a história. Manter a altura da voz na contramão da mensagem escrita viola a lógica da narrativa adequada.

A simpatia, o sorriso durante a leitura e o “jogar para cima” o final das frases são recursos que geram uma sensação de brincadeira e não seriedade por parte de quem está ouvindo a mensagem. Assim, numa mensagem de sarcasmo, numa ironia ou num momento de graça e piada, faz sentido o uso da alegria. Por óbvio, saber dosar corretamente no tom da mensagem escrita o nível de extrovertismo dão colorido adequado. Narrar uma cena de velório com alegria é tão absurdo quando narrar o ingresso na faculdade dos sonhos com indiferença.

Independentemente do discurso e da natureza da obra literária, o narrador tem uma obrigação: narrar com energia, com vontade, com tesão pela mensagem que está transmitindo. Voz sem energia denota narrador com preguiça ou sem vontade. E o que é lido sem vontade é escutado sem prazer.

Com base nisso que foi apresentado, entendemos que há toda uma multiplicidade de camadas interpretativas que, se ajustadas com exatidão, elevam a leitura compreendida e interpretada em uma experiência comunicativa de excelência capaz de fazer com que o ouvinte se interesse genuinamente pela informação e anseie continuar imerso na narrativa.

Quando dirigimos um trabalho de envergadura como o foi O Senhor dos Anéis, a preocupação com todas as dimensões da narrativa está presente para a geração da comunicação. Gostaria de convidar a todos a ouvirem o trabalho para compreender na prática tudo o que foi escrito aqui.

O diretor orienta a voz do hobbit a ser simpática e jovial, a textura arranhada e a velocidade lenta da fala do mago para gerar sensação de sabedoria, a força e imponência na voz para representar os humanos guerreiros, a aceleração da leitura nas cenas de batalha com os Orcs, a lentidão extrema e pausas exageradas para demonstrar a ancestralidade dos Ents e o desafinar e loucura para mostrar os momentos do Smeagol.

O bom narrador entende seja sozinho, seja com ajuda, e realiza com a precisão de uma orquestra, tocando todos os instrumentos ao mesmo tempo.

Tudo isso para fazer com que ouvir um clássico se torne mais do que receber a mensagem, mas sim ser conduzido com realismo e profundidade à emoção que o autor objetivava despertar em cada leitor quando passou décadas escolhendo as melhores palavras e as melhores formas de contar aquela história.

Ser narrador de audiolivros não é um trabalho para qualquer um. Não basta ser ator de voz. É preciso ser apaixonado pela arte de contar histórias. É preciso se preocupar com manipular sentimentos e sensações. É preciso ser sensível. É preciso ser obcecado por transmitir a mensagem correta, fiel e perfeita. É preciso ser cuidadoso com a pronúncia e com a articulação das palavras. É preciso sofrer na composição da nova obra de arte que está sendo esculpida com sua língua. E morrer de orgulho de mostrar essa nossa língua pro mundo todo. E isso, a inteligência artificial nunca vai conseguir fazer.


Spencer Toth é ator, narrador, locutor, dublador, diretor artístico e leitor compulsivo. É proprietário da empresa ptBR Voice Solutions especializada em produção de audiobooks

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