Mangás digitais e o “fantasma na máquina”

por Jefferson Ono

No mangá The Ghost in the Shell, de Shirow Masamune, a Major Motoko Kusanagi é uma ciborgue altamente avançada cuja única parte ainda orgânica é o seu cérebro. Em certo momento da trama, a Major se questiona se realmente tem um encéfalo, já que não pode vê-lo, e ela poderia ser apenas uma “personalidade virtual” acondicionada em neurônios cibernéticos. No que consistiria, então, sua verdadeira alma, o “fantasma” que habita sua “casca” de metais e circuitos?

O título da obra foi inspirado no conceito de “fantasma na máquina”, termo cunhado pelo filósofo Gilbert Ryle para criticar a visão de René Descartes de que mente e corpo são entidades separadas e independentes.

A alma do livro

Assim como as memórias e pensamentos da Major, a “alma” de um livro é fluida e adaptável a qualquer substrato, seja um pocket book popular, um encadernado de luxo ou uma tela de e-ink. Podemos amar o cheiro de um livro novo ou a textura de suas páginas, mas no fim do dia, o essencial é que o leitor tenha acesso ao seu conteúdo no formato que lhe for mais conveniente. Para o leitor ávido de quadrinhos, o formato digital tem muitas vantagens: acesso fácil à sua coleção sem o peso e volume das edições físicas; facilidade de compra de qualquer lugar com acesso à internet, sem depender da logística local de distribuição; e pronta disponibilidade de todas as edições, inclusive as esgotadas no impresso – este ponto é especialmente importante para os mangás, em que muitas séries se desenrolam por dezenas de volumes ao longo de anos de publicação. Para as editoras, no entanto, os mangás apresentam desafios particulares na transição para o formato de livros digitais.

Os desafios dos mangás

O primeiro grande desafio é o licenciamento: os japoneses são muito cautelosos na concessão de direitos para versões digitais de seus mangás, por receio (justificado) da pirataria e preocupação com a visão do autor para o título. Alguns autores, por exemplo, não aceitam a conversão de suas obras para livros digitais, uma vez que eles as conceberam para serem impressas.

O segundo desafio é o formato. Ao contrário dos livros em texto, que podem fluir e se moldar a qualquer tamanho de fonte e proporção de tela, os quadrinhos têm seu conteúdo indissociável da sua forma – aqui, o “fantasma” não é totalmente independente da “máquina”. Os mangás, com seus quadros irregulares e layouts criativos das páginas, são ainda mais ligados ao seu formato original. Os licenciadores, aliás, fazem questão de que a versão digital seja o mais fiel possível à edição impressa.

E por último, há o desafio do fluxo de produção. O layout exigido pelos mangás torna a criação dos arquivos com as ferramentas tradicionais, como o Sigil ou mesmo o Indesign, pouco prática. Some a isso dezenas de volumes por título e temos uma carga de trabalho não trivial.

Nossas soluções

Para levarmos os mangás aos leitores digitais, criamos na Editora JBC um processo eficiente envolvendo todas as áreas relevantes, do administrativo ao digital, passando pela edição, arte e aprovações. Começamos pela criação de um modelo ideal de arquivo ePub de layout fixo, baseado nas especificações oficiais da IDPF, na ótima documentação da Kobo e do Booknando, e em muitos testes internos. Uma vez que chegamos a um modelo satisfatório, usamos ele como base para nossa produção cotidiana, que segue um fluxo otimizado:

  • Assim que temos a licença de publicação digital de um determinado volume, pedimos os ISBNs necessários.
  • Paralelamente, a equipe de arte converte os arquivos de impressão do mangá, já devidamente editado e revisado, para as especificações do nosso modelo de ePub. Ao mesmo tempo, nosso núcleo digital prepara os metadados do volume, essenciais para as lojas de e-books.
  • Assim que os arquivos convertidos estão prontos, os inserimos no nosso processo de geração de ebooks e damos saída aos formatos .epub e .mobi.
  • Nosso editor envia os arquivos necessários para a aprovação dos licenciadores, enquanto finalizamos o controle de qualidade dos arquivos nos dispositivos leitores.
  • Com os ISBNs atribuídos e os arquivos aprovados, basta alinhar as datas de lançamento das edições digitais com as impressas, e enviar os mangás em formato digital para a plataforma MACs da Bookwire, que se encarrega de disponibilizá-los apenas nas lojas compatíveis com o formato de layout fixo.

Com um fluxo de trabalho colaborativo e automatizações inteligentes dos processos, conseguimos colocar à venda quase 150 volumes de mangás em formato digital em pouco mais de três meses, com uma equipe enxuta e baixo custo. E o melhor, dando aos nossos leitores a chance de ler volumes antigos e difíceis de encontrar no formato impresso.

O futuro

Não acredito que o “fantasma” e a “máquina” sejam entidades separadas. O digital e o físico, o e-book e o impresso, são apenas facetas da mesma obra, que em vez de se anular, se complementam. As edições impressas continuarão tendo um apelo especial para os colecionadores, enquanto os e-books oferecerão acesso mais fácil e democrático a um público mais amplo. Como editora, o melhor que podemos oferecer são mais meios para nossos leitores conhecerem as histórias que nos fascinam.

Se a história da Major Motoko despertou seu interesse, The Ghost in the Shell está disponível nas principais lojas de e-books, assim como sua sequência, The Ghost in the Shell 2.0,


Jefferson Ono é formado em Design Gráfico, lê mangás desde criança e é Coordenador de Arte na Editora JBC, onde ajudou a implementar o projeto de mangás digitais.

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