O livro digital e as vozes das ruas

Por Kim Doria

Que o formato do livro eletrônico apresenta uma série de possibilidades multimídia em relação às edições impressas, não me parece haver muitas dúvidas. Desde a inclusão de imagens – ou de ilustrações coloridas onde o orçamento gráfico do impresso impõe a opção pelo preto e branco – até vídeos, áudios e diversas formas de interação, o potencial parece ainda estar longe de ser explorado pelas editoras brasileiras. Sinal positivo, a meu ver, de que ainda temos muito o que experimentar com a forma-livro. Com esses comentários, não quero entrar em uma infrutífera discussão hierárquica entre o impresso e o eletrônico – enquanto leitor, me relaciono bem com os dois suportes e vejo espaço editorial e comercial para uma saudável convivência. Com base no trabalho que temos desenvolvido na Boitempo, gostaria de propor algumas reflexões sobre o potencial de interlocução com os leitores que o eletrônico apresenta.

Foto de @livrosdacha

Com muita alegria e fruto de muito trabalho, temos hoje o Blog e o canal de YouTube com maior número de inscritos (e audiência fiel) de todo o mercado editorial brasileiro. Esse engajamento resulta de um investimento na produção qualitativa de conteúdo que extrapola os livros que publicamos, mas é também reflexo das práticas editorias pelas quais a Boitempo é conhecida. Um exemplo: a Coleção Marx-Engels, pela qual somos conhecidos mundialmente na edição das obras do bicentenário barbudo, conta não apenas com traduções rigorosas a partir dos manuscritos originais, mas também com ampla gama de material de leitura complementar, incluindo aí um apanhado de prefácios, posfácios e cartas trocadas pelos autores, bem como comentários críticos de pesquisadores marxistas, cronologia detalhada de vida e obra dos autores e fac símiles de documentos históricos. A compilação extra aos originais tem por objetivo enriquecer as possibilidades críticas e históricas de recepção da leitura. O princípio é o mesmo que nos leva a organizar eventos (cursos, debates, clubes de leitura), publicar artigos e dossiês temáticos no Blog e produzir minisséries e minicursos no YouTube. Integrar todo esse conteúdo nas edições eletrônicas de nossos livros me parece um passo lógico a ser dado.

Foto de @_bookhunter

Assim, quem optar pela versão eletrônica de A liberdade é uma luta constante, a mais recente (e apaixonante) obra de Angela Davis, poderá, ao fim da leitura, acessar vídeos de palestras da autora que publicamos em nossas redes sociais. Por sua vez, um livro que fez história como Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, coletânea que resulta de uma série de discussões sobre os impasses políticos de nossos tempos, tem em seu e-book um apanhado de links que selecionamos direcionando a entrevistas, artigos e reportagens que dão conta de ampliar o debate. Vale notar que não há nada de ousado ou de visionário nessa opção de incluir conteúdo exclusivo às edições eletrônicas: meu ponto é que a própria editora pode propiciar aos seus leitores uma experiência de leitura mais ampla e, de quebra, introduzir de maneira qualificada suas redes sociais. Não raro, os únicos links encontrados em e-books brasileiros levam aos perfis da editora nas redes sociais. Acho uma opção válida, mas será que o engajamento não seria melhor se, além de dar o caminho para os perfis, apresentássemos as redes sociais por meio daquilo que produzimos especificamente sobre o título ou o tema do livro? Encontrar a página da editora no Facebook é algo bem mais intuitivo e fácil do que descobrir um excelente depoimento gravado com a autora do livro, por exemplo, e a segunda opção, a rigor, interessa mais a leitores do que a primeira.

Foto de @petiteluana

A integração entre a coordenação dos e-books e as redes sociais permite ainda uma oportunidade privilegiada para a editora se aproximar de seus leitores e dialogar sobre seus interesses. Enquanto promoções promovidas por lojas virtuais de editoras geralmente se limitam a uma comunidade de leitores restrita, correndo o risco de rivalizar com as livrarias das quais todos dependemos, temos com os e-books agilidade para promover ações comerciais de ampla capilaridade, que podem ser planejadas e executadas em pouco tempo (graças a ferramentas de distribuição como a própria Bookwire). Em 2016, a Boitempo disponibilizou gratuitamente o e-book de Por que gritamos Golpe? no dia em que Dilma Rousseff foi oficialmente impedida, ação concebida e executada no calor do momento (sobre a qual já se falou por aqui anteriormente), que foi evocada este ano com A verdade vencerá: o povo sabe por que me condenam, do ex-presidente Lula, quando sua prisão foi decretada de sopetão. Em ambos os casos, tivemos um aumento significativo de vendas das obras, tanto em suas versões eletrônicas quanto em suas versões impressas, devido à repercussão orgânica das promoções. Mesmo veículos de imprensa abertamente adversários do autor se valeram da ação para ganhar uns cliques, dada a manchete sedutora (“editora disponibiliza livro de graça”). Ainda que esse tipo de ação seja muito particular a um perfil específico de publicação, casa editorial e público leitor, imagino que poderia ser de alguma forma replicado com outros contextos próprios à dinâmica dos trending topics.

Foto de @camillaeseuslivros

Recentemente começamos a experimentar outra iniciativa que tem revelado um potencial muito interessante no que diz respeito à interlocução com os leitores: a dos mini e-books. No caso da Boitempo, publicamos alguns livros eletrônicos produzidos a partir de trechos de obras impressas, mas temos no mercado brasileiro casos de editoras que têm publicado títulos curtos exclusivamente em versão digital com resultados igualmente estimulantes, ainda que o universo de leitores do livro eletrônico seja modesto no país. Nossa primeira experiência foi com A mercadoria, o célebre capítulo 1 do primeiro livro de O capital. Trata-se de um dos textos de Marx mais indicados nas universidades, não raro para alunos que não se interessarão pela obra como um todo. A possibilidade de comprar apenas o texto sem a necessidade de pagar por todo o livro nos pareceu uma boa oportunidade de oferecer aos leitores uma alternativa às fotocópias, tão populares nas faculdades quanto posteriormente descartadas. (O preço do e-book, inclusive, foi definido levando em conta que deveria ser mais barato do que uma cópia do capítulo a partir de nossa edição.)

No último mês de março, publicamos capítulos do incontornável Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, em três curtos e-books: Educação e libertação: a perspectiva das mulheres negras; Estupro, racismo e o mito do estuprador negro; e Racismo no movimento sufragista feminino. São textos que podem ser lidos de maneira autônoma, comercializados a preços bastante acessíveis (de R$ 2 a R$ 5). Não só tivemos um aumento de vendas significativo da versão integral da obra, como a repercussão surpreendente de um dos mini livros possibilita intuir que alguns temas dentro da obra podem atrair mais do que outros. Ou seja, a comercialização compartimentada da obra pode nos dar dicas sobre o sucesso de sua repercussão e informar, de certa forma, o que os leitores estão procurando nos livros.

Outro potencial da publicação de trechos de livros – ainda a ser testado por aqui – é o de promover uma obra de qualidade que ainda não encontrou seu público. Às vezes um título abstrato ou uma capa desencontrada pode não comunicar aos seus leitores o conteúdo que está ali, a espera de ser descoberto. Mas um capítulo do livro que tenha um título mais comunicativo e possa ser lido de maneira isolada (a um preço convidativo) pode ser a maneira ideal para apresentar autor e obra aos seus leitores.

Fica o desafio de pensarmos uma forma da compra de um mini e-book se converter em desconto na compra da versão integral, para evitarmos que os leitores que descobrem uma obra a partir de um trecho se sintam desencorajados a comprar a obra toda, tendo de pagar novamente pelo mesmo trecho. E, tendo em vista aumentar o número de leitores do digital, temos ainda a lição de casa de encontrar uma maneira de oferecer em uma só compra as versões impressa e eletrônica por um preço atraente. A editora Hedra tem oferecido em sua própria loja virtual obra impressa e e-book a um preço ligeiramente maior do que o livro impresso – falta levarmos essa dinâmica para as redes de livrarias, alcançando uma comunidade maior de leitores.


Kim Doria é coordenador de livros eletrônicos, comunicação e eventos da editora Boitempo.

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