Ler, ouvir, REVISAR, repetir

Por Lorena Morgado

Organizo as ideias deste texto enquanto gero no ventre uma criança e surfo numa notícia sobre IA generativa e suas “ameaças”. Faço menção a isso, mas obviamente não ouso me estender. Embora curiosa sobre as máquinas inteligentes (e certamente afetada por elas), não vou parir nenhum John Connor… e venho exclusivamente tratar de revisão de audiolivros, um trabalho que ainda se pretende não sintético e sensível, vinculado a sentidos humanos e à nossa capacidade de interpretação.

No desenvolvimento de um livro ou audiolivro, nós revisores estamos no fim da trilha, quase no topo da montanha. Nós, no entanto, chegamos lá de helicóptero, sem a fadiga acumulada no caminho, levando fôlego para que a equipe possa fincar a bandeira. Quanto ao trajeto do livro falado, produtor e editor de áudio se concentram em outros aspectos importantes da produção desde o início, logo, eventuais deslizes durante a gravação passam despercebidos por qualquer edição minuciosa. Cabe então aos revisores com visão e audição frescas apontar as inconsistências entre texto impresso e áudio,e encaminhá-las para os ajustes antes da distribuição.

Ao receber a demanda de revisão, o responsável pela produção envia para mim os arquivos de áudio previamente editados e o PDF original da obra. Minha tarefa será a de comparar o que está escrito e o que é falado. Para isso, ligo o computador, pego os fones (circumaurais ou intra-auriculares) com isolamento acústico ou cancelamento de ruído, abro o texto no leitor de PDF, deixo o áudio na agulha do player (uso o Elmedia para Mac) e crio uma planilha (Excel ou Google Sheets) onde anoto as coordenadas que localizam tanto no áudio quanto no texto todo ajuste a ser feito. Insiro “nome do arquivo” de áudio definido pelo editor; “capítulo”, “página” e “parágrafo” do trecho no PDF; “tempo” do áudio (3 segundos antes do trecho apontado); e “tipo de correção” e “descrição” com o resumo do erro e seu detalhamento. Cada revisor cria a sua maneira um ambiente virtual que o favoreça ao lidar com três arquivos simultaneamente num fluxo ágil.

O modelo de relatório acima é o que geralmente uso, mas a editora ou produtora é responsável por guiar o formato do detalhamento que prefere acompanhar durante as emendas. Já segui um modelo que praticava inserções diretamente no PDF, por meio de legendas coloridas que identificavam o tipo de erro (incongruência no texto; problema de áudio; e pronúncia ou entonação), highlight nos trechos, e anotações em vermelho na lateral do arquivo (nome do arquivo; tempo de áudio; e descrição). Dessa forma, o revisor lida com dois arquivos em vez de três, mas o conceito formal do relatório para acompanhamento da revisão se perde nesse processo.

Enfim ler, ouvir, revisar, repetir. Meus olhos acompanham as linhas, os ouvidos captam o trecho falado, pauso, anoto e recomeço. O ciclo é simples, mas ele deve ser acima de tudo consistente. Foi preciso treinar a minha leitura para que eu me desviasse da tendência de ler o texto mais rápido do que ele é narrado, arriscando-me a deixar passar algo. Além disso, busco compreender ritmo, tom e sotaque do artista de voz, adaptando-me a eles. Ao notar uma discrepância, ouço novamente, confirmo o erro e aponto as coordenadas na planilha. Desvios de entonação e de pronúncia são o que considero mais difíceis de reconhecer. Certa vez, o artista pronunciou a mesma palavra de formas diferentes, ambas corretas, em momentos distantes do texto. Nessas horas, ouvido atento e memória ativa são fundamentais para lembrar qual foi a maneira dita antes e sinalizar o padrão que deverá ser mantido. A seguir, listo os tipos de correção mais comuns:

  • tempo de início (3”) e fim do áudio (5”)
  • tempo de pausa entre capítulos (3”) e subcapítulos (2”)
  • pausa longa ou curta demais durante a leitura
  • palavra errada
  • palavra omitida
  • palavra inserida
  • trecho repetido
  • trecho omitido
  • pronúncia (dicção) >> conferir em forvo.com
  • padrão de pronúncia durante toda a leitura
  • padrão de sotaque durante toda a leitura
  • padrão de tons e vozes de personagens
  • entonação / ênfase
  • ritmo / fluidez
  • ruído / estalo / clique / respiração (durante pausa ou durante leitura)
  • distorção digital (durante pausa ou durante leitura)
  • falha de áudio
  • consistência no volume
  • erros na versão impressa (corrigidos ou não pelo narrador)

É difícil determinar o tempo gasto para revisar um audiolivro. No meu caso, depende um pouco da minha conexão com a obra, do grau de atenção que consigo dedicar naquele momento e da quantidade de desvios no material (e depende sobretudo da data final acordada com o cliente). Um ambiente de trabalho silencioso e o meu entorno influenciam no tempo de concentração para ouvir atentamente os detalhes. Conheço o meu limite e faço pausas regulares longe do computador antes de deixar que as palavras se embaralhem diante dos meus olhos.

O exercício da revisão é, em certa medida, mecânico e repetitivo. Contudo, minha experiência pessoal e profissional com o audiolivro é sempre de reconexão com a tradição milenar de contar histórias e com a minha própria humanidade. Ouvir Jane Eyre, meu primeiro serviço de revisão, narrando sua autobiografia em português fluente e cadenciado foi vívido e estimulante para o trabalho. No fim das contas, pouco importa o título ou o número de vezes que precisei parar para anotar um erro. O que me encanta é saber que o nosso tino orgânico ainda é importante para o bom resultado, é ser parte do processo de elaboração de uma narrativa compartilhada entre dois leitores, e sentir que cada página ganha vida nesse enlace.

P.S.: Além das três janelas de trabalho contínuas, sempre abro a página do https://forvo.com/ para conferir pronúncias gravadas por seres humanos. Falando em pronúncia, você sabia que “ineXorável” tem som de /z/? https://pt.forvo.com/word/inexorável/#pt_br.


Lorena Morgado presta serviços de preparação e revisão de audiolivros desde 2021, tendo trabalhado para Storytel, Intrínseca, pt-BR Studio e Supersônica Livros. Formou-se em Letras/Inglês pela UFF e hoje, aos 34 anos, é copidesque em uma agência de publicidade de Niterói/RJ.

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